O texto visa realizar relatos pessoais sobre minha vivência lésbica, que aborda violência e compreender essas violências como uma experiência política, ou seja, uma vivência experienciada por diversos corpos lésbicos dentro do contexto de uma sociedade da supremacia masculina e da branquitude.
Gostaria de me apresentar sou uma lésbica masculina esteticamente, eu raspo os cabelos há vários anos, uso camisetas, bermudas e bonés, moro na periferia de São Paulo, tenho 28 anos contrariando as estatísticas 3, pele parda, estudante de história cotista racial e social e poeta de vulgo Formiga nas horas vagas.
O conceito de lesbo-ódio foi elaborado por Monalisa Gomyde 4 , que consta em seu vlog no YouTube. Gomyde vai discordar do conceito de lesbofobia que, segundo a etimologia da palavra significa medo de lésbicas e quando a sociedade expressa violência contra lésbicas, não é uma expressão de medo e sim de ódio. Gomyde propõe o uso do termo lesbo-ódio para substituir o termo lesbofobia e mais adequadamente nomear violências contra lésbicas na sociedade patriarcal.
Maira Gonçalves de Abreu 5, em sua tese de doutorado em sociologia defendida na Universidade Estadual de Campinas no ano de 2016, a respeito do movimento de libertação das mulheres na França na década de 1970, vai indicar que uma das ações desenvolvidas pelo movimento feminista tanto na França quanto nos EUA desenvolveu a técnica da auto consciência, que consistia em reuniões para falar sobre a vida de cada mulher presente, perceberem coisas em comum e a partir dai teorizaram sobre questões das mulheres. Um dos grandes motes do feminismo “o pessoal é politico”, criando nesse momento da segunda onda feminista, orienta o texto refletindo vivências pessoais e compreendendo elas como vivências politico pessoais.
Eu enquanto lésbica parda masculina passo por uma série de violências de lesbo-ódio que estão juntas e misturadas. O manifesto do coletivo do Rio Combahee 6 inicia seu texto afirmando que seu programa combate o capitalismo, o patriarcado, o racismo e a heterossexualidade nos trazendo a noção de imbricação das lutas, por tanto também imbricação das opressões.
Em agosto 2016 ao caminhar pelo centro da cidade de São Paulo, de bermuda larga, camiseta e boné da Um da sul 7, fui abordada por policiais. Um dos policiais com a arma apontada para minha cabeça ordenou que eu colocasse as mãos na cabeça e eu disse que ele tinha que chamar a polícia feminina porque eu sou “mulher”. O policial me humilhou de diversas formas e disse que já que já que eu quero ser homem ele iria me tratar como homem. O policial chegou ao ponto de me ameaçar dizendo que naquela hora ele estava fardado, mas a noite ele a paisana poderia sumir comigo que ninguém ia ver.
Luana Barbosa lésbica, preta, mãe e periférica morreu em decorrência de violência policial em abril de 2016. Fátima Lima 8 vai apontar que vivemos em um estado de necropolitica onde uns corpos são mais matáveis do que outros. No caso que está na mira no Brasil são os corpos pretos e pardos como o meu. Já sofri várias abordagens policiais ao longo dos meus 28 anos, todas violentas, mas após o assassinato de Luana estava muito escuro na minha cabeça que eu poderia ser a próxima 9.
Outra situação que aconteceu comigo em novembro de 2017, na sala de aula durante a minha apresentação de seminário sobre John Stuart Mill, nós do grupo apresentamos nossos nomes e durante o seminário a professora me chamou de Tiago, um nome masculino de um dos membros do grupos. Após o término do seminário, em um retorno das impressões da professora sobre nossa apresentação ela me chamou de Tiago novamente o que demonstra que ela achava que eu era um menino mesmo eu tendo me apresentado como Aline.
Em dezembro de 2018, em uma visita a minha família, minha tia avó, mulher branca ficou repetindo muitas vezes que eu ser assim homossexual é uma coisa natural e que é da minha natureza ser masculina.
Sheila Jeffreys 10, em seu livro La heresia lesbiana – la revolucion sexual de una perspectiva lesbiana feminista, vai mencionar o advento da sexologia ser datado do fim do século XIX. Jeffreys indica que o sexólogo Henry Havellock Ellis lançou a obra La inversion sexual, que pensa sobre lésbicas. Havellock Ellis vai compreender que existem dois tipos de lésbicas a lésbica congênita que seria a lésbica que nasceu lésbica e tem traços de masculidade e a lésbica que nasceu normal mas é corrompida pela lésbica congênita.
O pensamento de que lesbica é alguém que carrega uma essência masculina é algo que é construído histórica e cientificamente, que saiu da academia e adentrou ao senso comum com tal força que minha tia avó, o policial e a professora universitária, creem na mesma perspectiva da lésbica congênita. O grande problema dessa essencialização da lésbica como alguém masculino naturaliza o gênero e gera estereótipos que nos violentam levando inclusive ao lesbocídio 11.
Confundir lésbica masculina com homem é apenas um dos exemplos de lesbo-odio que as lésbicas masculinas passam. Denunciar a condição de vida das lésbicas dentro da sociedade patriarcal se apresenta como uma ferramenta para viabilizar nossas pautas e colaborar para reeducação social.
Notas
1 Não é possível trazer maiores detalhes bibliográficos porque tive que elaborar as pressas este texto por problemas pessoais e estou sem internet no local onde está sendo redigido.
2 Ativista lésbica parda autônoma periférica da cidade de São Paulo e poeta Formiga.
3 Alusão a frase do Mano Brow, dos Racionais Mcs na música Capitulo 4 versículo 3: “se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal por menos de um real minha chance era pouca, mas seu eu fosse aquele moleque de toca que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca. Mas não prossigo a mística vinte e sete ano contrariando as estatísticas.” Música situada no album Sobrevivendo no inferno de 1997.
4 Monalisa Gomyde é bacharel em Teoria Literaria pela Universidade Estadual de Campinas e ativista lésbica radical.
5 Como havia mencionado não tenho acesso a internet por isso não é possível trazer maiores dados sobre o texto e a teórica. Mas sei que a tese em questão foi defendida em 2016, na UNICAMP e versa sobre os conceitos de antiraturalismo e materialismo desenvolvidos no movimento de libertação das mulheres na França durante a década de 1970 e para tal a autora historiciza o mouvement de libertacion des femmes.
6 Coletivo do Rio Combahee é um coletivo de feminismo negro estadunidense que se organizou durante a década de 1970. Era compostos de algumas importantes ativistas lesbicas negras como por exemplo Audre Lorde e Barbara Smith. Em 1977 lançou seu célebre manifesto, que pode ser encontrado na coletânea de lésbicas de cor Esta puente es mi espalda, organizada por Gloria Anzaldua e Cherri Moraga nos anos 1980.
7 Um da sul é uma marca de roupas e loja de livros idealizada pelo escritor periférico Ferrez localizada na região do Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo.
8 Fátima Lima lésbica preta acadêmica do campo da Antropologia. O texto referido é de 2018 e foi lançado na Revista Gênero da UFBA.
9 Eu poderia ser a próxima é uma alusão ao filme produzido e lançado pelo coletivo Luana Barbosa em 2017 chamado Eu sou a próxima, que aborda assassinatos de lésbicas negras no ano de 2016.
10 Sheila Jeffreys é socióloga inglesa que estuda a teoria gay e teoria lésbica.
11 Lesbocídio é a noção de que lésbicas são assassinadas porque são lésbicas. O dossiê lesbocídio é uma pesquisa desenvolvida por Milena Carneiro Peres, Suane Fellipe Soares sob a orientação Maria Clara Dias, onde elas analisam assassinato e suicídio de lésbicas, compreendendo como uma violência específica contra lésbicas em nossa sociedade patriarcal.
texto escrito para o curso de pensamento lésbico por Formiga